19/04/2011

Refletindo sobre o texto de Saramago

Reflexões sobre a cegueira

Atenção: contém informações que alguns leitores podem considerar como spoilers.

A cegueira causada pela ausência de "percepção filosófica" está arraigada no cotidiano terreno de todos os membros ditos normais da sociedade, tendo sido isso muito bem demonstrado em Ensaio sobre a Cegueira. O texto do livro compõe uma espécie de parábola, que, como convém a esse tipo de literatura, é dissertado através de metáforas e simbolismos.

É interessante observar que parte da sinopse da estória de Saramago pode ser vista como um dos aspectos da evolução cultural de uma sociedade. Então, vejamos: um homem é acometido por uma luz inexplicável que obstrui sua visão. A cegueira radiante passa a contagiar os que
Seres humanos: imitadores cegos do que dita a cultura?
miram seu olhar, fazendo cada contaminado adquirir igual poder. Em pouco tempo, todos estão cegos pela mesma treva branca, sendo obrigados a agir, ainda que a contragosto, de acordo com as limitações impostas por ela. Essa síntese pode ser facilmente associada à seguinte: um grupo primitivo entrega-se a costumes e ritos cegos, que suprem a angústia ocasionada pela ignorância. A cegueira providencial rapidamente se consolida entre todos os membros, perpetuando-se na forma de tradições coercitivas. Desta forma, o senso coletivo e irracional impede o desenvolvimento do pensamento. Tem-se aí a cegueira de caráter mais amplo, a cultural.

Sob que prisma você enxerga as palavras do escritor?
Dentro desta, podemos identificar diversas outras, sendo a mais preponderante a do sentimento religioso. E esse é um dos prismas em que é possível transpor os personagens da fantasia para encarná-los em entes reais. Lembremos, de antemão, dos protagonistas: afora o primeiro cego e sua mulher, temos ainda o oftalmologista e sua mulher, o ladrão de carros, a prostituta, o menino estrábico e o velho da venda. Na estória, o primeiro cego, privado da visão, procurou o médico, sacerdote no assunto. Mas a doutrina contra a cegueira, além de mostrar-se incapaz de solucionar o caso, também não serviu para proteger um de seus próprios representantes. Por sua vez, os outros frequentadores do templo do sacerdote, dito consultório, já eram acometidos de desvios na visão antes da treva branca se manifestar.
Religião X ateísmo: o livro traz implícita a discussão?
E o lugar em que deveria se processar a cura acabou se tornando palco de contágio de cegueira maior. Pergunta-se: podemos entender, através dessa colocação, que Saramago considera as religiões e suas instituições como fontes de cegueira? E um detalhe desnecessário para a estória levanta um questionamento ainda mais profundo: por que o autor colocou, como pacientes do oftalmologista, somente pessoas, de uma forma ou de outra, repugnantes? Temos uma mulher que vende o corpo, além de um menino e um velho, ambos de má aparência. Seriam os fiéis cegos e repugnantes?

Uma messias racional? (1)
Ainda na mesma questão, vemos que justamente os proscritos mencionados acima, talvez por serem os mais necessitados de razão, foram abençoados com a presença de uma dotada de visão para guiá-los. A mulher do médico, bastião da sanidade e do caráter, teria sido, então, a representação de uma espécie de messias. Somente ela foi capaz de ver o caos e a imundície gerados pela cegueira. Somente ela pôde provocar o fim das injustiças advindas da camarata dos bandidos. E somente ela teve a coragem de sacrificar integralmente seu bem-estar e sua dignidade pela coletividade.

 Saramago: alusões subliminares... (2)                       ...à hipocrisia social? (3)
Certos valores sólidos de nossa cultura também podem ser investigados em fragmentos do texto de Saramago. Um que pode ser citado é a exagerada estima que a sociedade cristã (e Portugal é um grande expoente desta) confere à vida em qualquer circunstância. Alguns livres-pensadores apenas a consideram aceitável enquanto gozada na plenitude, pois não parece razoável a preservação de fiapos de existência, como ocorre com os doentes terminais. No trecho em que o ladrão de carros, já com a perna totalmente infeccionada, resolve buscar ajuda junto aos soldados, ele crê que sua penosa situação despertará sentimentos nobres nos guardiães. Pois foi sumariamente fuzilado. Nessa passagem, observam-se duas
A solidão de quem enxerga em um mundo de cegos (4)
particularidades: uma vinculada à hipocrisia da sociedade e outra à cegueira do doente. Com relação ao primeiro caso, é patente que o supremo apreço pela vida alheia se extinguiu no momento em que ela representou um suposto risco, mesmo que não intencional, à integridade da sociedade que positivou na lei a garantia por sua preservação a todo custo. Com relação ao segundo caso, é impressionante constatar a cegueira do doente para a inevitabilidade da extinção da vida. Por mais iminente que se apresente o fim, sempre nutre-se uma esperança de que ele não chegará, e que uma solução mágica surgirá para interromper sua inevitável ação. E, na estória, esse posicionamento foi a tônica.

O inferno do homem nasceria de sua própria cegueira? (5)
Nos trechos seguintes ao que é incendiado o manicômio, prisão inclemente segundo o sentimento dos doentes, percebe-se que o mundo externo dominado pela treva branca havia se tornado igualmente insuportável, apesar das prerrogativas de conforto proporcionadas pelo uso de apartamentos particulares. Vê-se que a verdadeira causa das mazelas não era, então, o local onde estavam enfurnados, mas a falta de visão.

Com relação ao caráter humano, pode-se dizer que este é um fator agravante da cegueira. E Saramago não parece muito convicto quanto a sua lisura. Em divagação que se inicia na página 25 e se estende até as três primeiras linhas da 27, o autor
Ausência de caráter: treva total?
confronta sugestões, entre as quais a de que o caráter possa ser moldado pelas circunstâncias e de que a manifestação da
consciência em prevaricadores simplórios possa ocorrer, em parte, devido ao temor. Mas demonstra descrédito contundente ao admitir que, mesmo em uma coletividade de desvalidos, o mal tem energia para germinar, tendo sido isso retratado na ação da quadrilha de bandidos cegos no manicômio.

Descobrir-se cego para aprender a enxergar
O livro Ensaio sobre a Cegueira, por se tratar de uma narração alegórica, permite tantas interpretações quanto o número de leitores que venha a ter. E cada detalhe da estória - tal como o encarceramento dos suspeitos de contágio, a sequência de ações das autoridades, a prostituição forçada das mulheres no manicômio, a solidão da velha que comia carne crua - pode ser encarado como uma intenção do autor em transmitir uma mensagem. Deste modo, conclui-se que uma parábola não tem o poder de extinguir a cegueira - já que o conteúdo desse tipo de texto pode ser adequado a idéias preestabelecidas - mas possui o dom de deixar seus portadores cientes de que ela existe. E é tal entendimento que despertará o desejo pela busca da visão.

(1) e (4) - Cenas do filme Blindness (Ensaio sobre a Cegueira), dirigido por Fernando Meirelles (Fox Filmes). Elenco: Julianne Moore, Danny Glover, Alice Braga, Mark Ruffalo, Gael García Bernal, Don McKellar, Maury Chaykin, Martha Burns.

(2) - Protesto durante o julgamento do caso Terri Schiavo.


(5) - Dante e Virgílio no Inferno (1822), quadro de Delacroix.

4 comentários:

  1. Excelente resenha de um excelente livro, Sergio!
    Realmente permite diversas interpretações, e confesso que deixei passar algumas partes.

    O próximo encontro do clube do livro organizado pelo meu prof de filosofia será sobre esse livro. Li há alguns meses e adoraria ler de novo e ver o que mais encontro, vamos ver se dá tempo, rs.

    E por falar nos aspectos religiosos, uma cena que me intriga muito é a dos santos vendados. Perguntei a uma professora de sociologia e ela não sabia sequer a sinopse do livro. Comofas?

    Já leu o Ensaio Sobre a Lucidez? Se ainda não, quando ler resenhe, por favor! :D

    cacotopico.blogspot.com

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  2. Oi, Bruna.

    Muito legal o seu professor de filosofia escolher esse livro para fazer uma oficina. Acho que dá tempo de terminar a leitura sim. Eu o li em um único domingo. Comecei de manhã e terminei à noite. Depois, passei uns dias pensando sobre ele para fazer o texto que você leu. Eu levava um caderninho comigo e anotava as ideias que iam surgindo.

    Não lembro dessa cena dos santos vendados. Também ainda não li o “Ensaio sobre a Lucidez”.

    Muito obrigado pela mensagem. Qualquer coisa que precisar, estamos aí.
    Bjs.

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  3. Ah, quando eu crescer quero ser parecida com meu professor intelectual e culturalmente, rs.

    A cena da igreja e os santos foi uma das que mais me marcou. Vamos ver lá o que me dizem. :D

    Gente, eu ando ficando muito devagar na leitura! A última vez que li um livro com mais de cem páginas em um dia só foi na oitava série.
    E preguiçosa pra escrever também, tou devendo muitas resenhas nos blogs.

    Obrigada por responder como sempre. =D

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  4. Você tem razão, Bruna. A tal passagem faz mesmo parte do livro. Vacilo meu. É o que dá ler um livro rápido demais rs. E você também tem razão quanto à força da cena. Com ela, dá pra viajar muito nas filosofadas. Parabéns por sua percepção.
    Bjs.

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