25/02/2017

Resenha: Lavoura Arcaica

Livro de Raduan Nassar


Skoob
A sinopse está mais abaixo, em azul e grafada em negrito

Um livro que morreu de overdose de LSD (Lirismo Sem Direção) ou Os quatro pecados de "Lavoura Arcaica"

Poucos livros me irritaram tanto quanto “Lavoura Arcaica” (de cabeça, cito “A Casa da Paixão”, de Nélida Piñon, e “Diário de um Sonho”, do desconhecido Carlos Briganti). Lançado em 1975, esse título de Raduan, por suas características, é talhado para atrair um público ideologizado ou alternativo. Há, inclusive, quem veja nessa história uma metáfora crítica ao sistema político-social brasileiro dos anos 70. Assim, não é de se estranhar a histeria elogiosa dos engajados em suas resenhas, em contraste ao desprezo do público em geral pela obra. Simpatizantes do autor podem atribuir isso ao baixo nível dos leitores, mas – mesmo admitindo que a grande massa realmente ama a literatura rasa e comercial – é impossível concordar que o contraponto a essas obras vazias seja a literatura representada por Raduan. Em uma régua de qualidade literária, “Lavoura Arcaica” estaria no extremo oposto aos livros transformados em filmes por Hollywood. Isso não é elogio, pois extremos são ruins. O bom senso está na harmonia, no equilíbrio... O verborrágico, o transbordante e o saturado de luz são tão ruins quanto o mudo, o vazio e o trevoso.

O primeiro suplício para o leitor de "Lavoura Arcaica" está na maneira de escrever de Raduan. Não é incomum capítulos com apenas um parágrafo e um único ponto final. Vírgulas, ponto e vírgulas e dois pontos são a regra; e são esses sinais que unem indiscriminadamente falas, pensamentos e narração. Para olhos massacrados por esse autor, o texto entijolado de Saramago assumirá facilmente a aparência de uma estrutura leve e organizada.

Mesmo que o leitor se acostume com tal bizarrice – tomada por maravilha em função de conceitos fantasiosos sobre o que seria uma verdadeira e sublime expressão artística – ele ainda precisará enfrentar longos mares tormentosos. Como a trama de “Lavoura Arcaica” é simplicíssima (André retorna à fazenda da família depois de ter ido embora para fugir do rigor paterno e do amor incestuoso pela irmã, Ana) e como as situações mostradas não demandariam maiores dramas se acontecessem com uma pessoa média real, o autor apela à pieguice para imprimir às cenas e aos diálogos uma profundidade dramática forçada. Assim, tudo se transforma em um interminável dramalhão, desmedido e irreal. O leitor se vê em meio a uma teatralidade tão patética, que começa a imaginar o protagonista emitindo interjeições exageradas de sofrimento com o antebraço colado à testa e a cabeça jogada para trás. É rir para não chorar! Vê-se que o autor, incapaz de emocionar com o conteúdo por si só, recorreu ao exagero na forma. Resultado: uma história sem naturalidade, sem verossimilhança.

Um autor militante...
Neste ponto, o leitor já está com dois fardos pesados para carregar, mas Raduan ainda reserva outros martírios para o pobre. Não bastasse a maneira prepotente de escrever (para soar artístico e original aos arrogantes acadêmicos e alternativos) e o uso de uma dramaticidade artificial, o autor incorre em uma verborragia prolixa de agastar até a mais zen das criaturas. Lendo, por exemplo, o apelo de André a Ana na capela, a tagarelice insuportável e sem fim do personagem acaba se transformando em barulho real nos ouvidos. É a primeira vez que palavras escritas me ensurdecem. Uma sinestesia massacrante.

Pensa que Raduan reservou apenas três fardos para o leitor? Não, não. Além de ter que ler um texto desconjuntado, ter que aturar uma dramaticidade teatral e forçada e ter que encarar uma sequência interminável de frases verborrágicas, o extenuado leitor ainda precisará suportar o ultra hiper megalirismo do texto. No livro de Raduan, não importa se quem fala é o narrador, uma prostituta, um fazendeiro xucro ou um jovem sem vivência. Todos os falantes são poetas da mais fina estirpe (até a vaca leiteira muge e o cachorro sarnento late esbanjando lirismo e poesia). E a naturalidade, que já havia sido abalroada pela teatralidade, acaba naufragando de vez.

Esses quatro fardos impedem o prazer de uma leitura fluida. Se um leitor acabar perdendo a concentração ou o fio da trama, a causa provavelmente não estará numa eventual incapacidade sua de compreender a obra, mas no sentimento de (profundo) enfado que certamente o atingiu. Trechos soltos do livro podem enganar os desavisados, pois pequenas transcrições têm o poder de esconder a verdade mais ampla de um texto ruim. É como dar um close nos belos olhos de um rosto disforme.

...e seus personagens piegas
Como eu disse no primeiro parágrafo, extremos são sempre ruins. Do mesmo modo que “Crepúsculo” ou “50 Tons de Cinza” são péssimos por traduzirem uma literatura comercial e vazia (o extremo em uma ponta), “Lavoura Arcaica” é péssimo por traduzir uma literatura prepotente, artificial e intragável (o extremo na outra ponta). Livros verdadeiramente geniais conseguem ser líricos e profundos sem entediar o leitor e sem perder a capacidade de contar uma história com clareza, conseguem ser dramáticos sem teatralizar, conseguem ser originais sem apelar para palhaçadas; e por aí vai. Temos exemplos disso para todos os gostos, passando por Dostoievski, Camus, Márquez, Cortázar e até mesmo por autore(a)s como Austen.

O mais triste é saber que essa obra pseudogenial (na verdade, medíocre) levou dinheiro de todos os brasileiros, inclusive da parcela majoritária da população que nem a respeita. O cidadão pagou na forma do prêmio Camões, mais uma daquelas invenções de uma panela que adora laurear os seus com dinheiro estatal, e na forma de subvenções à adaptação cinematográfica.

“Tempo” e “paciência” são dois temas centrais abordados pelo livro. Parece que Raduan tocou nessa última questão em causa própria, pois – para terminar a obra e, ao final, não se revoltar com tamanha fuleiragem – o leitor de fato precisará reunir toda a paciência de que dispõe. Quanto ao tempo, acredite, ele será torcido durante a leitura. Enquanto se estiver caminhando pelas palavras de Raduan, um segundo parecerá uma hora. Li o livro em alguns dias, mas parece que iniciei a jornada em outra era.

10 comentários:

  1. Que dor de cotovelo, hein

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    1. Vou responder com um trecho, de minha autoria, retirado do livro "Escritores Perguntam, Escritores Respondem", no qual 12 autores participam de um debate literário: "Infelizmente, essa massa se mostra simplória tanto ao avaliar os enganadores quanto os críticos. O Facebook é bombardeado diariamente por mensagens do tipo: 'o Fulano falou mal de Citrano porque tem inveja.' O senso comum costuma tachar os críticos de invejosos, os reclamantes de carentes, os incomodados de frustrados, os insatisfeitos de recalcados, os debatedores mais exaltados de ressentidos..., colocando espíritos legitimamente críticos e honestamente rebelados no mesmo saco de seres vis, aqueles de fato dominados por maus sentimentos e adeptos da invídia agressiva."

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  2. Sergio,
    Se ele conseguiu que você descrevesse o livro e lhe provocou algum sentimento, mesmo sendo ruim, mas você leu tudoooooo...
    Você se irritou...
    Você quis corrigir...
    Você escreveu um texTÃO...
    Ele conseguiu o que queria.
    Ele provocou a sua inteligência, fazendo-lhe se posicionar diante das aberrações, exageros, falta de sensibilidade e ao mesmo tempo sendo extremamente sensível.
    Ele é um monstro, daqueles que sabem cutucar a indignação literária e ganhou prêmio por este aspecto.
    Pense bem, ele conseguiu ou não?
    Te irritar, ler e corrigir tudo...
    É esta a intenção, porque estava cansado de tudo,de todos e enxovalhou a hipocrisia literária, que mesmo assim,o premiou.

    ☆ Corrigido o enxovalhou,pois escrevo no tablet e coloco 4 idiomas dando conflito no teclado... Havia saído ch

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    1. Oi, Erika. Ver todos elogiando um livro que consideramos muito ruim é o que gera aquela ânsia de gritar contra ele. O alvo pode ser “Lavoura Arcaica” ou “Crepúsculo”, mas se nossa racionalidade e sensibilidade vê certa obra – lida com calma, cuidado e respeito – como digna de desprezo (seja por ser vazia e comercial, seja por ter as características que descrevi na resenha), surge a vontade de fazer um textão elencando os motivos. Esse anseio aumenta quando vemos um livro ser elevado por motivos claramente transcendentes à literatura em si, como é o caso de “Lavoura Arcaica”. O interesse em afirmá-lo como grande obra não nasceu apenas da admiração pelo suposto esplendor textual de Raduan, mas porque livro e autor carregam aquele estigma contestador simpático à determinada visão política, social e artística. E prêmios como o Jabuti e o Camões são meros instrumentos de uma panela desejosa de conferir reconhecimento aos escritores que encarnam tal sentimento revolucionário. Assim, legitima-se a “arte” que serve aos ideais desse pensamento ideológico. Todos devem se lembrar da patetice feita em 2007 pelo júri do Jabuti, que laureou “Latinoamericana: Enciclopédia Contemporânea da América Latina e do Caribe” como a melhor obra de não ficção. Evidentemente, isso nada teve a ver com qualidade literária, mas com uma tentativa de dar o status de valiosa a uma obra que engrandece os ideais de esquerda. O mesmo aconteceu com a premiação em 2016 de “A Resistência”, romance cuja história aborda a ditadura argentina, escrito por Julián Fuks, clone de um Fidel jovem. Prêmios, para mim, não significam nada. Aliás, alguém aqui respeita Paulo Coelho pelas dezenas de prêmios, condecorações e títulos “respeitáveis” angariados por ele ao redor do mundo?

      Tudo de bom pra você e obrigado por comentar! :)

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  3. Eu adorei o seu jeito.
    Você está correto, pois se não há liberdade para expressar a nossa visão, o que temos?
    Nunca devemos baixar a cabeça e aceitar os erros com as aberrações, ou alguns fiascos inundados nas condutas, porque são uma visão torta para o errado ser o certo e mesmo sendo errado, ele é louvado.
    Mas, olho sempre o sadismo que cutuca o escritor, principalmente quando escreve algo assim.
    Ele fez e não quis nem saber.
    Ele tem espírito de porco, acho eu.
    O que leva um escritor fazer isto?
    Acho que ele estava de saco cheio, escreveu para entregar algo à Editora.
    Mesmo, fazendo uma maçaroca mais parecida com vermes textuais de gênero e formas, assim mesmo foi premiado.

    Mudando o assunto...
    Eu tenho desejo de escrever uma Novela...
    Já tenho título, as personagens estão borbulhando dentro da minha cabeça e uma vontade explosiva de saírem.
    Veja as novelas globais, são uma fila de lixos repetitivos e não dá mais (fora que impõem modas e conceitos como querem)
    Eu estava conversando com o meu filho Gabriel...
    Ele tem uma personalidade muito sensata e a seriedade de um senhor com seus 90 e tantos anos... ( ele tem 19)
    É um jovem fora da sua época, não se encaixa no padrão da cultura brasileira e lê muiiiiiiiiiiiiiito...
    Brasileiros não lêem, não vejo os jovens lerem com frequência ou quase nunca.
    Apenas os mais cultos ou adultos (quase idosos), por recomendação médica, para não envelhecerem a possibilidade do pensar.
    Meu filho leu mais de 200 livros, muitas vezes parece ser o meu Pai, meu Avô ... É sério isto, porque ele age muito centrado e maduro em demasiado, que chega sufocar-me na realidade.
    Eu gosto de fantasiar, sonhar, viver conforme o momento, porém sou realista, mas não fico tão focada na perfeição, justamente para não me machucar. "As pessoas são hipócritas" quando corrigidas ou vistas em vulnerabilidade e se tornam perversas.
    Eu procuro passar um pouco desta visão que tenho, pois acredito que meu filho está no país errado.
    Ao comentar a dramaturgia da novela e a idéia, ele me ouviu um pouco sem muita paciência, mas ouviu.
    Embora eu seja exageradamente falante, é tolerável e até chego à compreensão, pois para alguém que tem outras visões e pensa de um outro ângulo, me ouvir sem nada escrito... (Eu teria que sintetizar)
    Eu detesto sintetizar, pois fica meio turvo e perde a emoção.
    Ok, apenas em uma idealização da desvairada Mãe à falar, falar, falar, falaaaaar... é um saco.
    Eu sintetizei... 😊😃

    Ele disse-me :
    - Faça em formato roteiro para Série ou Filme, terás mais adeptos, seguidores e sucesso.

    Eu não consigo ficar séria, porque é real.
    Ele é muito certinho e não aceita nada, se não estiver escrito e escrito corretamente. Falta-lhe paciência, pois a inteligência é algo que não aceita erros ou invenções.
    Você é igual ao meu filho.
    És muito inteligente e sério.
    Ainda bem, pois estão morrendo os Escritores clássicos e ninguém faz nascer crianças cultas.
    Necessariamente precisamos cultivar nas crianças a vontade, o desejo e a gana por letras e mais letras, para não se perder a nossa Literatura.
    Livros infantis são chatos... (chatos é apelido) ... São um pesadelo e não atraem ninguém.
    Se os escritores pudessem escrever para as crianças, fariam melhor que escrever aos adultos.
    Porque cultivariam as sementes mais prósperas. ❤

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    1. Erika, só me resta agradecer e dizer que estou muito feliz com suas palavras. Na verdade, eu só faria uma pequena observação em relação a elas. Eu diria que a inteligência é, sim, muito amiga da criatividade. O que ela não aceita são as invencionices, as criações feitas sem qualquer critério.

      Sorte sua ter um filho como o Gabriel. E sorte dele ter uma mãe como você, já que as pessoas se completam com seus jeitos diferentes de ser :) Foi bom cruzar contigo nesse bate-papo, Erika. Abraços!

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  4. Quanta dor de cotovelo meeesmo! (conforme-se, Sergio Carmach, nem todos podem ser amados como o Raduan Nassar nem ter o talento dele)

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    1. É verdade... :) Critico Raduan para controlar meus espasmos de inveja. O motivo se repete quando critico a prosa “maravilhosa” de Paulo Coelho, a “brilhante” literatura “científica” de Ana Beatriz Barbosa Silva, a “profundidade” das autodenominadas divas literárias, a “grandiosidade” textual de Stephenie Meyer... O mesmo se dá quando desço a lenha em músicos “inspirados” de sertanejo universitário, axé... Quanto às minhas críticas à Dilma, é inegável: pura inveja do seu jeito competente de governar e do amor que a militância sente por ela. Preciso tratar esse despeito, essa carência... Só não sei o que o psicólogo dirá quando descobrir que – do mesmo jeito que critico determinadas pessoas de sucesso – elogio fervorosamente inúmeras outras com igual reconhecimento de crítica e/ou público.

      Meu(inha) amigo(a), o “argumento” da inveja é a abordagem mais boçal que existe. Desqualifica a pessoa que fala e, por tabela, pode desmerecer também quem é defendido por ela. A coisa fica ainda pior quando esse “valoroso” “argumento” é dito de forma anônima. Mas dá pra entender. Mostrar a cara numa situação dessas é mesmo constrangedor.

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